Romance corrida de bicicleta versus romance banquete

Sem consequência para o enredo de maior vulto no romance – e isto, veremos, é o decisivo –, Milan Kundera aparece como personagem do seu A Imortalidade e, a certa altura, discute com outro personagem sobre o processo criativo deste livro em que ambos se encontram. Nessa conversa, Kundera critica uma típica estrutura literária e defende uma forma de escrita que lhe parece mais recompensadora:

— […] lamento que quase todos os romances escritos até hoje obedeçam demais à regra da unidade de ação. Isto é, que estejam fundamentados apenas numa sequência causal de ações e acontecimentos. Esses romances parecem uma rua estreita, ao longo da qual os personagens são perseguidos com chicotadas. A tensão dramática é a verdadeira maldição do romance, porque transforma tudo, mesmo as mais belas páginas, mesmo as cenas e as observações mais surpreendentes, numa simples etapa que leva ao desfecho final, onde se concentra o sentido de tudo que precede. Devorado pelo fogo de sua própria tensão, o romance se consome como um monte de palha.

— Escutando você, disse timidamente o professor Avenarius, tenho medo de que seu romance seja chato.

— Deve-se então considerar chato tudo que não é uma corrida frenética para o desenlance final? Ao saborear esta coxa de pato, será que você se chateia? Você se apressa para o final? Pelo contrário, você quer que o pato entre em você o mais lentamente possível e que seu sabor se eternize. O romance não deve ser parecido com uma corrida de bicicleta, mas sim com um banquete onde se servem muitos pratos.

imagem: Edinei Knop

Mais recompensadora, pois o foco no desfecho desvalorizaria tudo o que vem antes dele, reduzindo as experiências possíveis do livro à experiência única da resolução do suspense. Essa estrutura promoveria leituras marcadas pela velocidade, quando o que Kundera quer é uma lentidão: que o leitor aproveite os momentos que constituem o livro. Isso pede uma forma de escrita que se recuse a “prender o leitor” – esse ideal tão pervasivo –, uma escrita que aceite o descontínuo e que se guie menos pelo drama e mais por temas e momentos. Essa tese criativa será efetivada de várias maneiras no próprio A Imortalidade e ecoa outra passagem do livro:

Rimbaud escreveu.

Caminho: tira de terra sobre a qual se anda a pé. A estrada diferencia-se do caminho não só porque a percorremos de carro, mas porque é uma simples linha ligando um ponto a outro. A estrada em si não faz nenhum sentido; só têm sentido os dois pontos ligados por ela. O caminho é uma homenagem ao espaço. Cada trecho do caminho tem um sentido próprio e nos convida a parar. A estrada é uma triunfal desvalorização do espaço, espaço que hoje em dia não é mais do que um entrave aos movimentos do homem, uma perda de tempo.

Antes mesmo de desaparecerem da paisagem, os caminhos desapareceram da alma humana: o homem não tem mais vontade de caminhar e de ter prazer nisso. Sua vida também, ele não a vê mais como um caminho, mas como uma estrada: como uma linha que leva de um ponto a outro, do posto de capitão ao posto de general, do estado de esposa ao estado de viúva. O tempo de viver está reduzido a um simples obstáculo que é preciso ultrapassar numa velocidade cada dia maior. […]

No mundo das estradas, uma bela paisagem significa: uma pequena ilha de beleza, ligada por um longo caminho a outras pequenas ilhas de beleza.

No mundo dos caminhos, a beleza é contínua e sempre variada; a cada passo, ela nos diz: “Pare!”

Fica evidente que a proposta estética de Kundera se relaciona intimamente com uma perspectiva ética: a distinção entre romances-corrida e romances-banquete se alinha à oposição estrada/caminho. É um mesmo princípio, um mesmo jeito de encarar o mundo, que gera um modo de escrever e um modo de viver. Escrever diferente é viver diferente? Viver diferente é escrever diferente?

***

Trechos citados respectivamente das páginas 234 e 219 da edição de 1990 da Nova Fronteira.

Autor

  • Duanne Ribeiro

    Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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