Meu sempiterno amor

por Beatriz Magalhães

Este é um dos textos selecionados na chamada Escreva entre as chamas, realizada no primeiro semestre de 2023. Conheça os demais destaques: “Meu maior amor“, de Hugo Almeida, e “Navona Runner“, de Ricardo Amorim.

Beatriz é artista plástica e arquiteta, autora de ReGIZtros efêmeros (2021); Caso Oblíquo (2009) e Sentimental com Filtro (2003), entre outros livros. Acesse seu perfil no Instagram.


imagem: Jordiet

Meu sempiterno amor,

Meu grande bem, primeiro e único como Momo, o grande bem que rege o Brasil há uma semana. O tríduo momesco só faz crescer, Zacarias, e favorecer suas escapadas, engordar a pulga atrás da minha orelha e martelar esta marchinha na minha cabeça: Cadê Zazá, cadê Zazá? Saiu dizendo vou ali, já volto já. Mas não voltou, por que, por que será? Nem me dou ao trabalho de pôr aspas no trecho. Plagiar plágio pode, né?

Escrevo estas chamuscadas linhas pois o limite do razoável foi ultrapassado. Se está rolando o que suspeito, Zazá, melhor, faça bom proveito, tomo medidas favoráveis a você: a fim de não o constranger em público, deixo de sobrescritar o envelope de tão patética carta a ser atirada aos bombeiros e você se verá livre ao fim desta. Desta, no caso, não é a missiva, sou eu.

Cá me encontro, cada vez mais só, cercada de chamas cada vez mais perto, mais altas. Fiquei a esperar seu incerto retorno. Sabe que costumo ser confiante, corajosa. Não temo nada, tirando cobra, proverbial pavor, mas isso não cai na prova.

Defino o que me tornei em palavra rascante: impertérrita. Superlativa, não acha? Estou em modo destemor, como você. O que não é o dia a dia, uma saca de sal consumida juntos, hein? Diferenças, temos. Você é ponderado, e eu, impulsiva, sabe disso, não se cansa de falar em autocontrole. Ambos valorosos, contudo.

Mas, neste instante, quem não estremeceria? Fumaça, rangidos, estalidos, estalos, estralejos, uma polifonia. Encolho-me ao crepitar crescente, sufocada, enlouqueço com o calor mais e mais envolvente das chamas. Qual chamas, flamas! Qual flamas, labaredas! Qual nada: fogaréu! A pele lisa e fresca que você apreciava… que tempo imperfeito este em que passo a conjugar nossa conjunção…

Eu poderia ter ido com você, mas não quis ser enxerida, fiquei curtindo a dor de cotovelo. Minto. Devo confessar – e vai soar estranho – que não fui para não contrariar traço comportamental do qual só tarde me dou conta: fidelidade extrema.

Sinto que tal traço me pertence, pois é próprio de um parente, destaque em reportagem internacional. Parente distante. Não apenas porque o seja em undécimo grau, mas porque mora na Herzegovina Oriental.

O que não é a força do quarto poder: mundo fechou! Vi esse longíquo parente como se fosse de perto. Longilíneo. Lento. Praticamente cego. Tire o praticamente. Pálido. Ponha um aflitivamente. Em termos de aparência, pouco tenho a ver com o transatlântico primo, mas na certa o nosso DNA bate.

Ele não me pareceu nada bem. Nada bem, entretanto, o danado. Ah, difícil a gente se fazer entender, as palavras traem propósitos, mas sei que você que sempre me entende vai entender que Olm, apelido de infância dele, nada feito peixe, o que lhe valeu mais um nome próprio e próprio para quem gosta de água. Percebe como escrever é mais tempestuoso do que navegar? Assim ouvi do navegador brasileiro de fama internacional aqui no depósito de móveis usados. ¿No le gustan los nuevos?

Voltando ao Olm, seu nome de registro, Proteus, foi reforçado com outro, Anguinus, bom para ser usado por mãe quando quer ser levada a sério: “Proteus Anguinus, já para o banho!”. Traduzido em minúsculas de uso nosso: divina enguia. Detalhe de somenos, todavia, esse. O que quero que entenda é o que ele tem, a fidelidade extrema, de fácil confusão com compromisso nupcial, voto matrimonial, pacto conjugal… ¡Y sin embargo es diferente! De repente, eu a reconheço em mim.

Trata-se de “fidelidade extrema ao local”. Assim foi dito na notícia sobre esse nadador que teima em querer nadar só no lugar recluso onde mora com a família, no que lembra personagem de conto famoso, o que obstina em voltar para casa nadando de piscina em piscina até chegar à sua. O sobrenome do autor agora me foge: John… Quando tento recuperar, sempre me sobrevém a marca de uísque Chivas.

A particularidade familiar foi revelada por longo estudo de cientistas de uma universidade. Nem pense em Harvard. Aconteceu lá mesmo no Leste Europeu, e em campo. Esse é o trunfo do triunfo da pesquisa. Trocando em miúdos e da água para o fogo: a fidelidade extrema, no meu caso, devia estar latente e aflorou porque tomei consciência da sua existência. Por graça ou desgraça do zelador do “Nosso Topa Tudo”. O desinfeliz esqueceu um televisor ligado. Assistia eu aos desfiles e blocos, aos telejornais, não escapando das propagandas de produtos obnubilados por enredos enigmáticos em cenários estrambóticos. Estaria ainda se o aparelho não tivesse entrado em curto-circuito, causando o sinistro que será o meu fim.

Sei o que dirá. Sugestão extrema: é disso que acha que padeço. Sugestão ou não, decidi cantarolar outra marchinha de carnaval. Outra não: Dove sta Zazà é cançoneta e napolitana. ¡Y quiero referirme a la prosodia brasileña! A “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Fidelidade extrema ou não, a lugar ou ser, é comigo, meu tesouro. Não dando conta de trair você, vou trair o meu instinto de sobrevivência.

Sua, ardente,

eternamente sua,

Salamandra Del Fuego

2 comentários sobre “Meu sempiterno amor

  1. Li, reli várias vezes o texto “Sempiterno, várias vezes fui ao dicionário, até perceber que o sentido dele está no encadeamento da leitura:“Fumaça, rangidos, estalidos, estalos, estralejos da Salamandra Del Fuego.”
    O seu texto é lindo, quando vivenciado, sentido em meandros racionais que Beatriz domina.
    Entre os três textos “escritos entre as chamas”, Sempiterno é tocante, ardente na fluição da leitura.

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