Meu maior amor

por Hugo Almeida

Este é um dos textos selecionados na chamada Escreva entre as chamas, realizada no primeiro semestre de 2023. Conheça os demais destaques: “Meu sempiterno amor“, de Beatriz Magalhães, e “Navona Runner“, de Ricardo Amorim.

Hugo é autor de mais de dez livros, entre eles Certos casais (2021), de contos.


imagem: Christos Kotsakis

Meu maior amor,

Apenas rabisco uma carta, Mãe. Quando saí de casa, disse que faria uma longa viagem. Agora você já sabe onde estou. Sim, carrego uma espingarda de ferro. Com ela vou quebrar todas as correntes, abrir as prisões – todas, todas –, vou matar os tiranos, vou devolver a terra ao povo. Mãe, minha mãe, é belo lutar pela liberdade. Há uma palavra de justiça em cada bala que disparo, há sonhos eternos que acordam e voam feito pássaros.

Vou resumir o que tenho vivido. O que eu mais temia aconteceu: me perdi dos meus companheiros ao tentar escapar do fogo inimigo. Cresceu o agito de aviões e helicópteros, havia também muitos soldados em terra. Agachados, ouvíamos os tiros, nos arrastamos separados. E fiquei sozinha na mata, sem bússola, pouca coisa na mochila. Entardecia. De uma hora para outra escureceu, ainda andei um pouco, tudo escuro, tudo, parecia uma noite perpétua. Eu não conseguia fazer nada, nem dormir, tinha de ficar no mesmo lugar até amanhecer, depois vagava, tentava encontrar alguma trilha que me levasse de volta aos meus camaradas, precisava encontrar algum veio d’água, falava baixinho comigo: você vai reencontrar seus amigos, Celeste, você vai sair deste fogo. E mais baixinho ainda: Mãe, a sua Laís vai voltar gloriosa. Rastejando, cheguei até uma árvore cheia de folhas macias no chão e fiz ali a minha cama. Sentia o vento que me acariciava. Que eu dormisse, que a noite me abraçasse. Apaguei. Não sei se dormi ou desmaiei de fraqueza, de fome. Acordei e olhei para cima, ainda era noite, havia uma pequena clareira, e vi o céu estrelado como jamais tinha visto igual. Senti cheiros saborosos. Chorei? Seria mentira dizer isso, mas aquele manto brilhante, infinito, a mistura de aromas e sons no meio do quiriri, silêncio noturno no mato brabo, tudo aquilo me emocionou. Eu precisava voltar ao chão, à emergência de sobreviver.

Encontrei de manhã cedo um pequeno riacho, limpinho, um chuá manso, bebi até matar a sede e enchi o cantil. Sentia que se existisse paraíso, era ali naquela mata, naquele pedaço de Brasil inexplorado – e os gorilas estavam atrás de nós cuspindo fogo. Precisava comer alguma coisa, não iria longe com aquela fome, a fraqueza tonteava meu corpo. A luz da manhã atravessou em silêncio os galhos das folhas e me acordou de vez, não sei que horas eram. Eu tinha de andar, andar e encontrar alimento. Peguei minhas poucas coisas, a espingarda e o cantil cheio e andei, andei, havia cortes nos braços, nas pernas, o cansaço logo exigiu uma parada. Esperei um pouco, rezei, rezei, confesso. Apareceu no chão uma fruta que não conhecia. Salivando, saboreei, trêmula, a mais deliciosa refeição da minha vida. Que fruta era, meu Deus? E em alguns minutos já me sentia forte, Mãe, ressuscitada. Eu não perdia a esperança.

Andei seis dias pela mata sem encontrar um caminho conhecido, sabia que estava na serra, comia frutos silvestres, alguns doces, outros amargos, de poucos eu sabia o nome. Minha roupa estava quase em frangalhos, a única pergunta que me fazia era Onde estão meus camaradas? Estão vivos? Será que caíram? No sétimo dia, minha Mãe, me vi numa emboscada. Eram muitos, me cercaram, me deram voz de prisão, eu nunca me entregaria, dei um tiro, errei. Eles acertaram minha perna esquerda. Caí. Mesmo ferida, consegui me levantar. Cara a cara com o assassino, eu já desarmada. Qual é o seu nome? Guerrilheira não tem nome, filho da puta! Eu lhe meti um tapa na cara. Que estalo gostoso, olhos esbugalhados de ódio. Se quer liberdade, então toma, cadela!, berrou. E ouvi uma trovoada de tiros. A dor foi intensa e rápida, apaguei. Largaram meu corpo ali. Logo eu estava acima dele, deles.

Daqui posso vê-los, ele e eles, que se afastam, discutindo, me queriam viva. Rodopio no ar, meio perdida. Eles voltam. Derramam alguma coisa que parece gasolina no que há pouco me abrigava e riscam um fósforo, que nega fogo, mas eles têm muitos. Meu corpo faz um rápido estrondo e abre um clarão na mata. Eles dão um pulo de susto para trás, alguns se queimaram com o meu incêndio. Eu ainda estava por ali e pude ver quando pegaram o que restava de mim, já esfriado com água, colocaram num saco com pedras e pedras. Meu corpo encolheu queimado, mas ficou aquela bola estufada de pedras. Levaram o pacote escuro no helicóptero, sobrevoaram a Serra das Andorinhas – que floresta linda vista de cima, nem em filme ou sonho vi igual – e pouco depois me jogaram – morta e grávida, grávida de pedras vivas – no meio do Araguaia. Não escuto o que dizem, o que gritam, devem xingar você, Mãe.

Quando se luta pela liberdade, morrer não parece tão trágico. Mas nem o fogo, nem a morte me mata. Agora e sempre, Mãe, meu amor, meu maior amor, trago a tua imagem comigo. Foi também por ti, minha Mãe, que lutei. Para que nunca mais haja lágrimas nos teus olhos.

Celeste, a sua eternamente Laís.

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