Livro de Partida | Monica Marques, “Transversais”

Não pensei em escrever um livro. Ele escreveu-se por essa estranha necessidade humana de dizer, de atender ao chamado das coisas que se querem nos dizer, ou, talvez, desdizer

Livro de Partida convida autores de primeira obra lançada a falar sobre ela, sobre sua produção, edição, publicação

Transversais, Monica Marques

O nascimento de um livro é feito de acasos, encontros e desencontros que escapam em grande medida aos planos do autor e, no entanto, todos os seus elementos são absolutamente necessários. A obra arrasta atrás de si todo o seu mundo e os seus acontecimentos que, por sua natureza, excedem largamente a consciência. Desse modo, o relato sobre sua construção torna-se uma ficção a posteriori. Não pensei em escrever um livro. Ele escreveu-se por essa estranha necessidade humana de dizer, de atender ao chamado das coisas que se querem nos dizer, ou, talvez, desdizer. Dizer para a cada vez cair novamente no abismo do silêncio. Usar palavras para desnomear objetos, desfazer-se de todo resto diante dessa inflação de conceitos e explicações sobre o mundo.

Dos Encontros e Desencontros

Depois de um longo período sem escrever, por causa do jornal dos alunos do curso de filosofia da USP, O Discurso Sem Método, reencontrei alguns poemas da adolescência. Não eram maus. Lapidei e mandei para o Discurso. Mas já era tarde, estava escrevendo novamente, porém agora mais madura, com outras referências.

Ao mesmo tempo, encontros díspares ocorriam: Orides Fontela, Heidegger, Nietzsche, os “pós-modernos”, os antigos, as folhas, o olhar, os musgos e as cores do mundo, e outros que não saberia dizer. Era inevitável ter de rever alguns de nossos valores e conceitos mais fundamentais: a desconstrução do sujeito, da ideia de substância, a incapacidade de agarrar as coisas de forma segura e certa. Mas isso já não poderia ser dito pelo discurso racional, menos ainda pelo lirismo, outro modo deveria ser possível.

Nesse limbo, entre o fracasso do projeto moderno e o não-projeto pós-moderno, tudo se tornou tão estranho que as próprias coisas pareciam exigir uma releitura do que se entendia por elas, assim como a maneira como as falávamos. O mundo já não era tão simples, as ferramentas usuais já não eram suficientes. A mera denúncia acerca da revolta da razão era inútil. Mas também não havia espaço para uma ode à loucura e à imaginação, tampouco para uma queda em um relativismo desacreditado — na pura “expressão de si”, o si era o que menos interessava. Daí porque o reencontro com a poesia nesse momento tenha sido tão fundamental. Ela pareceu capaz de realizar essa mediação entre uma visão fragmentária e uma possibilidade que não fosse subjetivista.

O estudo da poesia de forma mais profunda abriu novos caminhos. O encontro com a essência do dizer e o mistério cravado em cada coisa produziam novos poemas. Os poemas começavam a transitar por fragmentos de existência, pelo absurdo de cada instante que liga cada fragmento ao outro. O desmedido invadia os versos. O ego se dissolvia, já não era um sujeito que dizia, era o próprio mundo se dizendo. Um labirinto assentado entre a razão e o caos, entre o apreensível e o inefável. Estranhamente, me parecia que era precisamente essa fragmentação dos poemas que era capaz de preservar a verdade que havia neles, ainda que sob a forma do não-dito e de espaços vazios, ao manter a sensação de desconforto e apontar para além de si sem oferecer uma explicação. Eles mudavam de sentido a cada revisão, iam se transformando, a coesão do projeto ia se criando na medida em que o livro ia se escrevendo. Talvez fossem capazes de transcender o simples lamento sem cair num vazio louvor à libertinagem e oferecer uma experiência mais profunda e menos óbvia.

A Publicação

Abriu um concurso na USP, o programa Nascente. E já tinha cerca de 60 poemas. Por que não? Foi então que os organizei em formato de livro, dei-lhe um nome: Transversais. Enviei. Ele acabou sendo indicado como finalista. Não ganhei nada além de uma menção honrosa, mas ao menos isso me deu alguma confiança: mais alguém havia se interessado pelo trabalho.

Decidi enviar para a editora Patuá, gostava de seu projeto — apostar em novos autores. Estava conformada em esperar por meses por uma resposta, mas ela não demorou. O editor, Eduardo Lacerda, publicaria. O livro se punha a caminho de sua materialização: o prefácio e a orelha para os amigos, revisar até a exaustão o texto final, pensar a capa. Ele chegou na sexta. O lançamento era sábado. Agora ele segue pelo mundo, em busca de novos encontros.

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