Trouxeste a Chave? é uma série que reúne depoimentos de editores sobre o seu ofício e sobre como escolhem os bons autores. Desta vez, falamos com Victor Paes, editor da Confraria do Vento, também escritor e ator. Saiba mais no blog.
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— Aos 15 anos, tinha um amigo com quem conversava sempre sobre literatura. Um dia, estávamos no barracão de seu avô, mexendo em alguns livros velhos, em meio a ferramentas e eletrodomésticos sem uso, quando encontramos um volume do Sítio do Pica-Pau Amarelo e nos lembramos de Monteiro Lobato como editor. Nos perguntamos se seria muito arriscado e árduo e loucura no futuro se ter uma editora. Pensamos bastante, mas nenhum dos dois sabia a resposta. Hoje eu sei muito bem. E ele também, porque continuamos amigos.
— Ser editor e escritor ao mesmo tempo soa quase como uma comprovação de distúrbio psicológico. Gostar muito de literatura pode levar alguém a escrever, a trabalhar com livros ou apenas a continuar lendo. Mas quando leva a tudo junto, uma coisa pode acabar (pela tensão ideológica, pelo tempo de dedicação exigido por cada um) se tornando conflitante com a outra. Alguém que decida viver assim parece não ter nenhum compromisso com a própria ou com qualquer tipo de sanidade. Mas, no fim, o próprio conflito acaba, quando é bem administrado, criando o equilíbrio entre uma visão profissional, na postura que se assume perante o mercado, e uma visão de respeito com o próprio escritor. É melhor assumir a loucura, usando-a a seu favor, para produzir com dignidade, do que posar de são e estar embotado pela guerra dos egos e das prateleiras. Pois apenas gostar muito de literatura já é naturalmente desconfiar do conceito de sanidade receitado pelo mundo.
— Uma das coisas importantes a averiguar, em busca de um novo grande escritor, nas linhas e entrelinhas de um livro enviado para análise, é se o autor, antes de tudo, é um grande leitor.
Uma das belezas de se ter uma editora: fazer com que um novo escritor se encontre com um novo leitor, participar com empenho na invenção dessas novas lembranças.
— Livrarias são madrastas que nos adotam porque esperam o amor que daremos em retorno. Como, licitamente, qualquer madrasta. No caso de uma editora, o amor vale de 40% a 60% de nossa capacidade de amar.
— É muito estimulante quando algum escritor revela que passou a viver exclusivamente de literatura. Isso é o que sonhamos que aconteça com todos os autores da Confraria. Mas o editor, quando passa a viver de literatura, começa a causar suspeitas. Todos pensam que ele começa a viver no luxo. No nosso caso isso é até verdade. Mas o luxo só começou quando nos envolvemos com venda de quentinhas e corrida de cavalos…
— Há escritores que se tornam amigos dos editores. Outros seguem desconfiando deles pela vida toda. Isso tem a ver com o entendimento que cada um tem daquilo que move o outro. Mas esse entendimento só acontece após o entendimento daquilo que move a si mesmo, pois só a partir daí se sabe o que se tem para contribuir no movimento do outro. Um escritor pequeno muitas vezes compensa isso com alguma mania de grandeza. A Confraria tem muita sorte nesse sentido, com o tamanho de seus escritores.
— Ler um bom livro, clássico ou contemporâneo, que investigue a fundo, de qualquer modo que seja, os parâmetros do que chamamos humanidade, nos leva não à sensação de estar presenciando algo que ainda não conhecíamos e sim de estar lembrando de algo de que havíamos nos esquecido. Quando entramos em uma biblioteca ou em uma livraria, parece que toda aquela memória, expandida de tantos cérebros, em tantos tempos diferentes, é uma memória toda nossa. Isso se aplica a todas as formas de arte. A ânsia de se conhecer tudo é a ânsia de se lembrar de tudo. E essa é uma das belezas de se ter uma editora: fazer com que um novo escritor se encontre com um novo leitor, participar com empenho na invenção dessas novas lembranças.