Dragão

por Maya Falks

Texto convidado por Criadouro dentro do desafio gerado pela premissa Escreva entre as chamas.

Maya é comunicadora, escritora e professora de escrita criativa, além de resenhista no blog Bibliofilia Cotidiana e leitora crítica no Escritório Literário. Premiada em diversos gêneros, é autora de nove livros publicados e outros dois com lançamentos previstos para 2023.


Fornalha de uma locomotiva | imagem: Hefin Owen

Dragão,

Esta é uma carta de amor, mesmo que eu tenha aprendido a te odiar nesses anos todos em que minha água foi evaporada pelo teu fogo. Eu e tantos sonhos que me cercavam muito antes de nossas primeiras faíscas viramos pó, fomos incinerados pela querosene que corre em tuas veias.

Tenho pressa, escrevo no papel que restou enquanto as chamas degustam as paredes. Chamo de purificação de toda a dor que me causaste. Cicatrizes de pele repuxada hoje integram o inventário da minha anatomia.

Fui consumida pelo trepidar de tua ira, Dragão. Tu, que nunca precisou de mais de um sopro para acender meu fogo, igualmente me tocou com teu desejo incandescente e me reservou ao pó. Cinzas com cheiro de carne morta. Queimada feito bruxa.

Me sufoca a mistura de combustíveis que usei pra queimar o que te restava: a tua casa fedorenta, a única carta de amor que tua ignorância te permitiu receber e a tua amada. Sim, entrego-me ao calor das labaredas para deixar no fogo o que tu prezavas e não deixar nem um pedaço de minha carne para teu deleite.

Serei inteiramente consumida como uma matéria-prima integralmente incorporada a uma causa maior. Escrevo, pingando de minha testa o calor desse incêndio não-metafórico. A fuligem já mancha a pele da mão que escrevo, aquilo que já tornou cinza desce pela minha traqueia com a brutal força de uma avalanche. Minha visão fica turva enquanto meus pulmões entram em combustão.

Estou morrendo entre as chamas, Dragão. Já aceitei meu destino; não haveria melhor saída à amante de um Dragão do que sucumbir a um casulo em chamas. Nosso casulo, onde encontrei o melhor dos mundos contigo entre as pernas e o pior dos infernos com teu punho em meu corpo.

Aceito me desfazer da existência para que nada te reste a reivindicar. Nem sobre meu caixão vai chorar as mágoas porque nada restará à roupa de madeira que me for escolhida. Me dei por vencida.

Talvez ainda me tentem socorrer, mas será em vão, elas estão tão próximas que já conseguem sondar meu corpo para me envolver nesse abraço quente como o diabo a quem explicará teus crimes.

Perderá hoje tudo que tu amou com ódio e quem te odiou com amor, e eu levarei às brasas meu desabafo.

O tempo urge. Logo o papel será consumido como quem nunca existiu. Eu já perco as forças no calor insuportável, na minha garganta ressecada, na minha pele a ser chicoteada pelo fogo.

Antes que eu perca a consciência, para que meu corpo possa enfim ser dissolvido entre as chamas, te digo do fundo do coração:

Eu te amo, Dragão, e dessa vez fui eu que risquei o fósforo.

Te encontro no inferno.

Da sua sereia.

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