Para Elisa

por Duanne Ribeiro

Texto publicado pela equipe de Criadouro dentro do desafio gerado pela premissa Escreva entre as chamas.

Duanne é escritor, jornalista e pesquisador. É editor de Úrsula. Em literatura, publicou a rapsódia As Esferas do Dragão, pela Patuá. Deve publicar neste ano o livro de poesia *ker-, pela Mondru. Mantém também o site duanneribeiro.info.


Capa do disco Ventura, dos Los Hermanos

Começo a escrever esta carta e escuto você usar aquele tom de voz que você sabe bem qual é e dizer que “eu não sei medir nem tempo e nem medo”, quer dizer, cagar regra com letra do Los Hermanos. Elisa, faça você bom proveito desta merda de Los Hermanos. Aliás, quer saber? Realmente, você até que teria razão: essa porra está pegando fogo e a última coisa que eu devia fazer é ficar escrevendo carta. Por que é que estou escrevendo carta, você pergunta? Mas como, Elisa? Não é real oficial que “todas as cartas de amor são ridículas”? Mas então! Essa é ridícula em dobro! Ridícula pra caralho, ridícula nível suicida. Tá bom pra você? (Nem todas as cartas ridículas são de amor — mas esta é.) Foda-se o Pessoa também. Muito bem. Veja só o quanto eu te amo: escrevendo nessa porra pegando fogo. Magnânimo. Abnegado. Palavras difíceis: mode on. Se bem que eu acho que tenho chance de fugir. A fumaça ainda não está tão espessa, não há bloqueio na porta nem parece haver na escada. E são só três andares. Estou aqui pensando se você vai levar isso tudo menos a sério porque tenho chance de fugir. Quanto dióxido de carbono eu tenho de respirar pra você me levar a sério? Queimadura de primeiro grau, paixão de verão. Queimadura de terceiro grau, amor daqueles velhos que aparecem em reportagem especial na TV que um peida o outro já sabe o gás que nem sommelier. Esse era o meu sonho. Quer dizer, não cheirar peido, não isso, lógico: viver contigo, me estender em você, me misturar com você, nos ampliarmos. “Veja você onde é que tudo foi desabar” — sua voz está na minha cabeça, pelo menos você se misturou comigo, hein? Desabou em mim. Caiu uma ripa grande ali no corredor. Tem uma gritaria infernal lá fora. Sabe que eu acho que é um jeito bem confortável de morrer, ninguém vai me achar covarde, vão assumir que eu tentei e não consegui, normal, quando chega a hora, a gente vai. Quanto importa o que julgarem? Atingi uma paz. Será que isso é prova bastante, Elisa? Se eu sair daqui, vou abandonar a paz — e por quem, hein? Igual eu chegasse no Nirvana, infelizmente há um incêndio, os budas à pururuca, ainda assim, o Nirvana, ou seja, uma completude— e, puta que pariu, eu largo mão disso. Por quem, hein? Vamos lá, põe o cabo dos óculos na boca do jeito de sempre, vira os olhos pra cima e responde. Quem! Se bem que eu tenho que sair daqui pelo menos pra salvar a carta. Pois é. Ou eu posso amarrar em alguma coisa e jogar pela janela. Mas aí vão saber que eu resolvi ficar. Mas aí podem vir me salvar e eu perco esse meu poder absoluto de escolha sobre a minha vida que eu nunca tive. Mas se fosse pra ninguém saber eu não devia ter escrito. Estou aqui que nem louco pensando, escrevendo, “escrita automática”, né?, “os surrealistas”, os surrealistas a minha bunda, Elisa. Desculpa. É que você sabe tanto… é que, eu, tão pequeno… mas pelo menos tenho isso daqui, essa você não encarava, hein? Sentar sossegado e escrever em um prédio pegando fogo. Caralho! Sentindo o pulso de tudo. Com o bafo do destino no cangote, escrevo. Um poema concreto. Um tratado de metafísica. Uma confissão de crime. Que mais? Uma carta de amor. Engrossou a fumaça. Você vê com clareza numa situação assim, minha Elisa. É mais fácil amar em perigo. Talvez eu esteja escrevendo isso e esteja indeciso sobre me salvar ou não porque sei que lá fora o desafio é pior: amar em segurança. Escrever em tranquilidade. Sufocado: tanto lugar pra fugir. “A gente só queria o amor” — eu gosto tanto que a sua voz ainda desafine em mim — “Deus parece às vezes se esquecer”. Compra uma agenda, seu puto. Foda-se. Vou sair.

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