Navona Runner

por Ricardo Amorim

Este é um dos textos selecionados na chamada Escreva entre as chamas, realizada no primeiro semestre de 2023. Conheça os demais destaques: “Meu sempiterno amor“, de Beatriz Magalhães, e “Meu maior amor“, de Hugo Almeida.

Ricardo é escritor, engenheiro e músico (no canal com o mesmo nome deste conto, há algumas composições suas). Mantém o blog Retalhos da vida de um professor.


imagem: Max Stanworth

Reconheço que o desespero sempre me guinou da realidade e por mais que corrija o leme não alcanço modos de me pacificar. Não fora isso, qual o motivo de estar a escrever em papel que será queimado na lenha que fiz questão de alumiar? Quem lê cinzas senão o criador? E que criador é este que permite o atentado? Quase consigo ver-me de fora, em terceira pessoa, em trajes de confissão de vida, em jornada de fazer as pazes com os escrúpulos que, em compêndio, tatuei na imaterialidade do corpo. Contudo, o desamor ampara-me mais confortos do que deveria e esmaece-me a vontade de ir em ultreia. Jamais te escreveria uma carta de amor. O desencaixe que tal tine em mim furaria a bolha que tal conceito enleva. Do amor não se fala, pois se extingue. O amor infunde-se, desespera-se, injecta-se. No instante em que enceta a ser verso de escrutínio, o racional golpeia e derriba a candura do sentimento. Jamais te escreveria uma carta de amor. Esta epístola remete-se a mim, pois o fervilhar da minha mente somente se rearranja quando jorra fora a pressão, num exercício quase impessoal, já que minha mão esquadrinha palavras sem um consentimento tácito da minha vontade. Dizem-me que sou muitos. Dizem-me que sou inconstante, peculiar. Dizem-me que tenho acomodados tantos egos, heterónimos, idiossincrasias, porém, quando me topo ao espelho vejo um. Um mais um. Um mais um mais um. Mas sempre o mesmo. Arde a lenha e com ela o meu nervo. Soube-o desde o início. Uma vez mais acossa-me o desespero, desta vez de curar a carne em lume. Afinal, desisto. Abro a porta e rumo de novo à vida, sem mirar a cabana que desmorona os meus pecados. Irei escrever de novo a Ofélia.

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